Opinião

1968 e a morte dos museus

No mesmo ano, Glauber viria a finalizar o O dragão da maldade contra o santo guerreiro

Viktor Chagas, Mário Chagas



O ano de 1968 pode ser considerado o mergulho numa viagem ou a partida para uma odisséia ainda não acabada. Se em maio de 1968, estudantes saíam às ruas na França, em junho, no Brasil, 100 mil pessoas ocupavam o Centro do Rio, num dos, até então, mais importantes protestos contra a ditadura militar. Estudantes, professores, operários, artistas, intelectuais, religiosos, trabalhadores de diferentes ofícios, filhos, mães e pais estavam lá na passeata dos 100 mil, lutando pela democracia e pela solidariedade; sonhando um mundo livre dos autoritarismos, das ditaduras, das censuras, dos conservadorismos. Na histórica passeata de 26 de junho de 1968, que merece ser celebrada – ao contrário do que sugerem alguns colunistas – estavam Oscar Niemeyer, Carlos Scliar, Chico Buarque de Holanda, Ernandes Fernandes, Elayne Fonseca, Ziraldo, Clarice Lispector, Fernando Gabeira, Milton Nascimento, Gilberto Gil e tantos outros. Naquele dia, Gilberto Gil comemorava 26 anos de idade e saboreava o lançamento do disco Gilberto Gil e a preparação do lançamento para julho daquele mesmo ano do Panis et circences, marco fundamental da tropicália.

Com uma câmera na mão e uma idéia na cabeça, Glauber Rocha, criador desse famoso bordão do cinema brasileiro, assistiu às manifestações populares. Com o material filmado, deixou inacabado o curta 1968. No mesmo ano, Glauber viria a finalizar o O dragão da maldade contra o santo guerreiro, que mistura antropofagicamente cordel e ópera, e de forma alegórica fala sobre o folclore nordestino e o heroísmo do cangaço ante o coronelismo. Setores da vanguarda cultural do Ocidente, no final dos anos 60 e início dos anos 70, anunciaram a morte ou o desaparecimento próximo dos museus. Em agosto de 1971, como informou Hugues de Varine, durante a IX Conferência Geral do Conselho Internacional de Museus, realizada em Paris, Dijon e Grenoble, o beninense Stanislas Adotévi e o mexicano Mario Vásquez proclamavam abertamente: a "revolução do museu será radical, ou o museu desaparecerá". O necrológio do museu, traduzido a partir de um desejo político, aparecia acompanhado de um discurso que colocava em movimento críticas severas ao caráter aristocrático, autoritário, acrítico, conservador e inibidor dessas instituições, consideradas como espécie em extinção e, por isso mesmo, apelidadas de "dinossauros" e de "elefantes brancos". No entanto, 20, 30 ou 40 anos depois, verificou-se que os museus não só não morreram, como se proliferaram e ganharam destaque na vida do mundo contemporâneo.

Mas as críticas dirigidas ao caráter dinossáurico de algumas instituições museais surtiram efeito e parecem ter estimulado os ventos reformistas que, nas décadas de 1980 e 1990, passaram por algumas delas. A modernização trouxe maior preocupação com os serviços destinados ao público e maior atenção para as práticas pedagógicas, além do aprimoramento dos recursos expográficos e do refinamento dos procedimentos técnico-científicos nas áreas de preservação, restauração e documentação museográfica. Num mundo que passou a adotar o espetáculo como medida de todas as coisas, o próprio caráter dinossáurico foi transformado em elemento espetacular. Como um corolário da cultura espetacular absorvida e desenvolvida pelos museus clássicos consagraram-se as chamadas megaexposições, algumas tratando de artes, outras de tesouros históricos e outras ainda de ciências e de dinossauros, todas sempre espetaculares. Os ventos reformistas, no entanto, não pretendiam abolir e não aboliram os acentos autoritário, aristocrático, colonialista e imperialista de muitas dessas instituições. O que se pretendia evitar é que um museu como o Louvre, considerado como "protótipo do almoxarifado de um patrimônio burguês", fosse incendiado, como simbólica e ironicamente preconizavam os representantes da geração de 1968.

A sugestão que fica é a de que o diagnóstico da morte ou do desaparecimento próximo dos museus – considerados como lugares consagrados pela tradição cultural da burguesia ocidental – deve ser lido como parte dos movimentos político-sociais de crítica e contestação que, nas décadas de 1960 e 1970, atingiram diversos valores institucionalizados. Se tais críticas parecem ter contribuído para a invenção de um novo futuro para os museus tradicionais, por outro, parecem ter colocado em movimento o desejo de uma nova imaginação museal.

A toda ação libertária corresponde uma repressora; a toda contracultura corresponde uma cultura. E assim 1968 ficou marcado.

A viagem de 1968 não terminou; suas utopias libertárias, suas forças transformadoras continuam em movimento, fertilizando novos processos transformadores. Por tudo isso, vale comemorar os 40 anos do extraordinário ano de 1968 e a transformação do universo museal.

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