Ruas e Avenidas
Funes*

Estava com pressa. Aquele dia de trabalho me cansara, me entediara. Queria chegar ao meu destino. E então um trecho de estrada com sinaleiras vermelhas e sinaleiras vermelhas, e trânsito intenso, e sinais amarelos quase vermelhos, e carros lentos na pista da direita, e sinais vermelhos com tecnologia de ponta, em que o vermelho vai reduzindo-se gradualmente até desaparecer (quem o idiota que inventou isso? Que pensa ele disso? Que nos fazendo cientes do tempo que teremos que esperar pelo verde nos acalmará? Ou espera vender mais caro uma idéia que não precisa ser melhorada? Ela se basta como é. À puta que pariu o engenheiro que nos brindou com tamanha mostra de imbecilidade criativa. Deve ser um magal de merda. A mãe dele deve ter adorado o projeto!) e cansaço, e ira, e chuva e carros lentos na pista da direita, e lentos na pista da esquerda, lado a lado, como que anestesiados, e sinais amarelos que logo ficarão vermelhos sobre o nosso nariz por termos que ficar atrás dos lentos, e noite, e mais chuva. Isso o que enfrentava eu para chegar ao Instituto de Artes. Tentava livrar-me dessa estupidez toda ultrapassando pela direita, andando acima da velocidade permitida, costurando perigosamente o trânsito de autômatos que enfrentava com ira, vencendo a cada um para logo ter outro a frente, numa carreira sem fim, num jogo por demais irritante. Imbecis todos eles, a me barrarem a passagem numa calma tola e idiota de pessoas medíocres e catatônicas. À minha frente, mais outro sinal amarelo, eu embalado. Entre mim e o sinal mais um carro; uma distancia de pouco mais de cinquenta metros nos separava. Não vi luz de freio no carro da frente - enfim alguém razoável - e segui embalado para vencer o amarelo ainda reinante da sinaleira. E então surgem luzes amarelas no carro da frente, luzes de freio; sinal ainda amarelo; e então eu freio. O responsável e conformado motorista parou uns bons 2 segundos antes do sinal tornar-se vermelho, logo abaixo deste! Bom senso nesta terra não há! E eu cravo então o pé direito no freio com toda a força. Vou bater, eu sei disso. Nos primeiros metros, quando freara e as rodas ainda giravam sobre o asfalto molhado, ainda tinha esperanças. Mas agora eu sentia que o carro da frente estava já imóvel, e pude perceber então que eu vinha a uma velocidade considerável, dado o vertiginoso número de metros que ganhava em relação a ele em curto espaço. Agora os pneus travados a derraparem silenciosamente no asfalto molhado. Era uma boa distância, mas sabia que iria bater. Era um fato. Encarei o fato: ter que sair à chuva, travar diálogo admitindo culpa com o outro motorista, sentir sua indignação coberta de razão mundana. Tudo isso nervoso, muito nervoso, num estado-de-acidente-de-trânsito completamente inconsciente das centenas de pessoas que passam devagar a te olhar. (Pelo menos assim as venceria uma vez então, as ignorando por completo.) E pensei em toda a despesa que estaria por vir, no que deixaria de gastar, consumir; fazer. E que teria que ligar para a seguradora, fazer o sinistro, chamar os azuizinhos - se estes não aparecessem espontaneamente, como urubus na carniça. Ir para a casa então, porque o destino inicialmente traçado não faria mais sentido. Dirigindo, ou sobre um guincho, a lamentar a falta de paciência com uma população de conformados ao volante, sobre a qual não recaía nenhuma pena, mas a mim somente. E pensei no tempo que o carro ficaria na oficina, e nos ônibus em que teria de ir e voltar do trabalho, e no quão cedo acordaria, e nos programas que deixaria de fazer. E me sentiria culpado, e encararia a tudo isso como a um castigo merecido, e mais uma vez creria que aprendera finalmente a lição. E o carro ainda a deslizar. Decidi girar o volante à direita, numa tentativa frustrada de tirar o veículo da rota de colizão, mas em vão. Girara-o todo e absolutamente nada mudara. Ia rumo ao inexorável impacto resignado, ainda pensando. É impressionante o quão rápido pode andar o cérebro humano numa situação dessas, a pensar uma eternidade de coisas num repente, muito ao contrário da velocidade deste em uma prova de matemática, por exemplo. Os fatos parecem estar todos lá ao mesmo tempo, todas as sensações, tudo numa fração de segundos, sem esforço, em sequência ou mesmo simultaneamente, não sei dizer, mas muito rápido. E então chego aos metros finais antes do impacto, aos centímetros finais, e tenho mais certeza do que nunca da batida; sei que não será fraca. E então o carro pára. E eu espero, como uma eternidade, por sentir o impacto, o barulho da batida. As mãos enterradas no volante, os músculos todos hirtos, os olhos sem piscar, olhar também hirto. E nada acontece. Nada. O carro da frente não recebe um miligrama de impacto, apesar de estar agora colado ao meu. Ainda não me mexo. Procuro os olhos do motorista do famigerado carro à minha frente pelo retrovisor deste, mas está escuro. Penso os ver, mas não tenho certeza nenhuma. Nada acontece. Nada. O sinal fica verde, o Ka à minha frente anda. Eu reluto ainda alguns segundos, a sentir a carga de adrenalina bombeada por meu corpo inteiro sendo dissipada pelos músculos enrigecidos, pelo desespero, por uma reação rápida, enérgica. E tudo se esvai então, lentamente, num imenso alívio. Lentamente ponho o carro a andar, lentamente. Uma grande calma se apossa de mim. Um alívio não só psicológico, mas um alívio químico, físico, pela reação física ao estresse. E então me dirijo à pista da direita, e o trânsito flui lenta, agradavelmente, como um surfar, um deslizar, em meio às luzes de faróis e avenidas. E finalmente então eu vou em paz, em harmonia com a população de carros à minha volta, nas ondas sonoras da Radio Guaíba FM Estereo, 101,3 MHZ: classe especial para quem quer o melhor.

Um comentário:

Anônimo disse...

me lembro do tal fato... e então penso qual não seria o produto literário caso o carro estivesse a girar, e a girar, e a girar... Faz aí uma parte 2! ;-) "Googleando" foi que te encontrei aqui!

chuac!
Lari